A Festa da Boa Morte, que acontece anualmente em Cachoeira, no Recôncavo baiano, remonta ao século XIX e é um dos mais importantes eventos religiosos e culturais do Brasil. Ela combina tradições católicas e de matriz africana, expressando com clareza a história de resistência das mulheres negras na Bahia.
A festividade popular começa no dia 13 de agosto, inclui missa, samba e serve-se comida. Nesta sexta-feira (15), o dia é dedicado a Nossa Senhora, quando acontece a grande procissão. A festa se prolonga até o dia 17.
Origem da festa
A Irmandade da Boa Morte é uma confraria religiosa afro-católica, composta por mulheres negras, muitas idosas, que são, principalmente, descendentes de escravizados, e que une tradição, resistência e elementos de crenças religiosas, misturas presentes e marcantes no estado. O historiador e professor Rafael Dantas explica ao site que o grupo carrega uma história de mais de um século com elas.
“Depois de meados do século XIX, a festa se estabilizou na cidade de Cachoeira, após as integrantes da Irmandade serem expulsas de Salvador. A saída delas da capital marca um momento muito importante de recomeço nas terras do Recôncavo baiano. O contexto histórico reforça essa importância, já que o local era o grande palco das relações comerciais e culturais da Bahia daquele momento histórico e do início do século XX”, esclarece o pesquisador.
“Portanto, não é qualquer lugar: é o Recôncavo da Bahia. Isso é muito significativo de se destacar, especialmente pelos laços com as pautas raciais e religiosas, em uma região formada majoritariamente por homens e mulheres negras”, acrescenta.
Alforria de escravizados
As mulheres que formaram a Irmandade também tiveram uma importância fundamental no auxílio da alforria de escravizados durante o século XIX. Elas organizavam festas, rifas, doações e contribuições internas para arrecadar dinheiro. Esses recursos eram usados para comprar cartas de liberdade, especialmente para mulheres negras idosas, doentes ou sem condições de trabalhar para pagar a própria alforria.
Mais do que um gesto de solidariedade, essa prática tinha um sentido espiritual: garantir que irmãos e irmãs de fé pudessem ter uma “boa morte”, ou seja, morrer livres, com dignidade, recebendo os sacramentos e cuidados religiosos negados a tantos escravizados.
“A presença de irmandades tão importantes, como essa, insere-se nesse contexto. Não apenas a Boa Morte, mas outras confrarias também tiveram papel fundamental nesse processo de resistência, de compra de alforrias, de articulação social e espiritual, oferecendo caminhos de acolhimento e proteção em uma sociedade escravocrata. A palavra ‘acolhimento’ talvez seja central para compreender esse papel”, expressa o historiador.
Foto: Reprodução/ Redes sociais
Sincretismo afro-católico
Oficialmente, a confraria é dedicada à Nossa Senhora da Boa Morte e Glória, uma devoção católica ligada à Assunção de Maria, celebrada em agosto. Porém, por trás das procissões, missas e ladainhas, persistiam símbolos e práticas herdadas das religiões de matriz africana, especialmente do candomblé nagô. O sincretismo acontecia por necessidade e estratégia. No século XIX, as religiões africanas eram perseguidas, e assumir publicamente uma identidade católica era uma forma de proteção.
As irmãs da Boa Morte participavam ativamente da Igreja, com hábitos, velas e imagens, mas também mantinham cultos discretos aos orixás, sobretudo Oxum, ligada à feminilidade, à riqueza e às águas doces, e Iansã, senhora dos ventos e da passagem entre a vida e a morte. Esses orixás eram associados a Nossa Senhora da Glória e a Nossa Senhora da Boa Morte, respectivamente, criando uma ponte entre universos religiosos distintos.
“O sincretismo e os encontros culturais estão presentes em todos os aspectos: na questão racial, nos trajes utilizados, no pano da costa, nas joias, nos tecidos, nas cores, nos próprios ritos internos, que carregam a ancestralidade da influência católica e da tradição negra, um reflexo dessa Bahia de encontros tão diversos. A fotografia da Irmandade da Boa Morte, com as faces daquelas mulheres, suas roupas, seus cânticos, ladainhas e romarias, expressa exatamente esses encontros culturais que definem nosso estado”, explica Rafael.
Os rituais da festa também refletem essa mistura. A programação inclui missas solenes, procissões com andores e cânticos católicos, mas, fora da igreja, há toques de atabaque, comidas votivas, danças e cânticos em iorubá, marcando a presença viva do candomblé. A festa termina com o enterro simbólico de Nossa Senhora, seguido por um banquete e danças, celebrando sua “assunção” e, ao mesmo tempo, reverenciando a ancestralidade africana.
Resistência feminina
Com um período de atividade secular, a tradição segue viva por meio destas mulheres que levam adiante uma das festas mais importantes da cultura do Recôncavo baiano, resistindo ao tempo e às mudanças da sociedade brasileira.
“Podemos dizer que cada época trouxe transformações que refletiram as mudanças sociais. As irmandades adaptaram costumes, formas de se articular e se compreender dentro da sociedade. A resistência feminina no século XIX, a força dessas mulheres empreendedoras, articuladas e influentes, é uma característica marcante e decisiva na consolidação desse grupo”, manifesta o pesquisador.
“Em resumo, a Irmandade da Boa Morte tem importância fundamental. Representa um pedaço vivo da Bahia, sua diversidade e sua história. Não se trata de uma irmandade que se perdeu no tempo, como tantas outras que só restam em documentos. É uma irmandade que, graças à força resistente e ao papel dessas mulheres corajosas, se perpetuou e ainda hoje permanece como uma bela referência cultural e religiosa do Recôncavo baiano”, expressa Rafael Dantas.
Foto: Reprodução/ Ipac-BA
O site tentou entrar em contato com representantes da Irmandade da Boa Morte, para que pudessem compartilhar suas histórias, mas não recebeu retorno até o fechamento da matéria.
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